E ele não disse 'África'
Demétrio Magnoli
O Estado de S. Paulo, 29/08/2013
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.
Meio século atrás, à sombra do Memorial de Lincoln, em Washington,
Martin Luther King pronunciou 1.667 palavras. Nenhuma delas era "África"
- ou "africanos", ou mesmo "afro-americanos". Nessa ausência se
encontra a prova da atualidade do discurso mais célebre do século 20.
Deveríamos ouvi-lo novamente, prestando atenção no contraste entre
aquela linguagem e a utilizada hoje pelos arautos das políticas de raça.
King aludiu à Proclamação de Emancipação, de Abraham Lincoln, "um grande
farol de esperança para milhões de negros escravos", mencionou as
"algemas da segregação" e as "correntes da discriminação" que, cem anos
depois, ainda aleijavam "a vida dos negros", e falou sobre a "solitária
ilha de pobreza, em meio a um vasto oceano de prosperidade material", na
qual viviam os negros. No discurso de agosto de 1963, os negros eram
definidos por referências situacionais (escravidão, segregação,
pobreza), não por uma essência identitária (raça, etnia, cultura ou
origem).
Americanos, não "afro-americanos" - isso são os negros, na linguagem de
King. Os negros, que experimentam "o exílio em sua própria terra",
marcharam à "capital de nossa nação" para cobrar uma promessa de
igualdade escrita "pelos arquitetos de nossa República" na Declaração de
Independência e na Constituição. A luta para resgatar aquela "nota
promissória" ergueria "nossa nação das areias movediças da injustiça
racial para a sólida rocha da fraternidade". Ela não deveria
"conduzir-nos a desconfiar de todas as pessoas brancas", pois "muitos de
nossos irmãos brancos (...) compreenderam que o destino deles está
preso ao nosso" e que "a liberdade deles está inextricavelmente ligada à
nossa".
A linguagem de King não desafiava apenas as leis de segregação, seu alvo
imediato, mas uma narrativa sobre a origem dos Estados Unidos, seu alvo
distante. Tal narrativa, uma versão da ideia do melting pot, se
coagulara no final do século 19 como reação à libertação dos escravos e
como chave lógica para a segregação racial oficial. Ela descrevia os
Estados Unidos como uma nação de colonos brancos rodeada por minorias
raciais (indígenas, asiáticos e negros africanos). No discurso que
completa 50 anos, King contestava todo esse cortejo de noções
identitárias emanadas do pensamento racial. Não, dizia, a nação é outra
coisa - é aquilo que está escrito nos textos fundadores!
A contestação de King separava-o de uma longa tradição da política negra
nos Estados Unidos. W. E. B. Du Bois entalhara o mito da raça na
fachada da venerável NAACP, a principal organização negra americana. Ele
não acreditava no valor explicativo de "grosseiras diferenças físicas
de cor, cabelos e ossos", mas invocava "forças sutis" que "dividiram os
seres humanos em raças claramente definidas aos olhos do historiador e
do sociólogo".
"Nós", dizia Du Bois, "somos americanos por nascimento e cidadania" e
"em virtude de nossos ideais políticos, nossa linguagem, nossa
religião". Contudo, acrescentava, "nosso americanismo não vai além
disso", pois, "a partir desse ponto, somos negros, membros de uma raça
histórica que se encontra adormecida desde a aurora da criação, mas
começa a acordar nas florestas escuras de sua pátria africana".
Afro-americanos: o termo, cunhado muito depois na bigorna do
multiculturalismo, foi concebido no início do século 20 como um fruto do
pensamento racial. A atualidade do discurso de King encontra-se
precisamente na sua ruptura com a visão de Du Bois, que era um reflexo
da narrativa racista sobre a nação branca.
Du Bois, revisitado pelo multiculturalismo, não o universalismo de King,
é a fonte das políticas oficiais de raça no Brasil. Um documento de
"orientações curriculares" para a "educação étnico-racial" da Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo, datado de 2008, sintetiza as
diretrizes que, a partir do MEC, disseminam entre os jovens estudantes a
noção de divisão da humanidade em raças. O texto deplora a vasta
diversidade de cores utilizada pelos indivíduos em declarações
censitárias, que contribuiria "para diminuir o potencial político da
população afro-brasileira".
"A pluralidade de cores no país diz quem é o povo brasileiro, mas não
sua identidade étnico-racial", segundo os sábios da secretaria. A
solução para a carência identitária residiria numa especial
reinterpretação das palavras dos declarantes. Operando como "um agente
social de reconhecimento eficaz do outro", transformando-se "em alguém
mais ativo no processo de identificação", o recenseador produziria em
tabelas e gráficos a "população afro-brasileira" que não emerge das
autodeclarações. Em termos diretos, trata-se de manufaturar uma fraude
censitária com a finalidade de gerar as tais "raças claramente definidas
aos olhos do historiador e do sociólogo" de que falava Du Bois.
Destinado a professores, o texto veiculava a mensagem inequívoca de que
na sala de aula a linguagem da raça é um imperativo absoluto, em nome do
qual se deve ignorar a informação censitária factual.
"Eu tenho o sonho de que meus quatro pequenos filhos viverão, um dia,
numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo teor
de seu caráter." A sentença nuclear do discurso de King não solicitava o
reconhecimento de identidades étnicas ou de direitos raciais. Ela
exigia que os Estados Unidos aplicassem o princípio, contido nos seus
documentos fundadores, segundo o qual "todos os seres humanos são
criados iguais". A igualdade entre indivíduos livres de todas as cores,
não um acordo político entre coletividades raciais distintas, era a
reivindicação do 28 de agosto de 1963. Eis por que aquele dia permanece
tão atual, lá e aqui.
Eu também tenho um sonho. Sonho com o dia em que milhões de exemplares
do discurso de Martin Luther King sejam distribuídos, clandestinamente,
como material subversivo nas escolas brasileiras.
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