O automóvel é o grande vilão do desenvolvimento sustentável
"O tema é bastante atual."
Mobilidade versus carrocentrismo
Ampliar espaços de circulação para
automóveis individuais é enxugar gelo, como já bem perceberam os
responsáveis pelas mais dinâmicas cidades
Automóveis individuais e combustíveis
fósseis são as marcas mais emblemáticas da cultura, da sociedade e da
economia do século 20.
A conquista da mobilidade é um ganho
extraordinário, e sua influência exprime-se no próprio desenho das
cidades. Entre 1950 e 1960, nada menos que 20 milhões de pessoas
passaram a viver nos subúrbios norte-americanos, movendo-se diariamente
para o trabalho em carros particulares. Há hoje mais de 1 bilhão de
veículos motorizados. Seiscentos milhões são automóveis.
A produção global é de 70 milhões de
unidades anuais e tende a crescer. Uma grande empresa petrolífera afirma
em suas peças publicitárias: precisamos nos preparar, em 2020, para um
mundo com mais de 2 bilhões de veículos.
O realismo dessa previsão não a faz menos
sinistra. O automóvel particular, ícone da mobilidade durante dois
terços do século 20, tornou-se hoje o seu avesso.
O desenvolvimento sustentável exige uma
ação firme para evitar o horizonte sombrio do trânsito paralisado por
três razões básicas.
Em primeiro lugar, o automóvel individual
com base no motor a combustão interna é de uma ineficiência
impressionante. Ele pesa 20 vezes a carga que transporta, ocupa um
espaço imenso e seu motor desperdiça entre 65% e 80% da energia que
consome.
É a unidade entre duas eras em extinção: a
do petróleo e a do ferro. Pior: a inovação que domina o setor até hoje
consiste muito mais em aumentar a potência, a velocidade e o peso dos
carros do que em reduzir seu consumo de combustíveis.
Em 1990, um automóvel fazia de zero a cem
quilômetros em 14,5 segundos, em média. Hoje, leva nove segundos; em
alguns casos, quatro.
O consumo só diminuiu ali onde os governos impuseram metas nesta direção: na Europa e no Japão.
Foi preciso esperar a crise de 2008 para
que essas metas, pela primeira vez, chegassem aos EUA. Deborah Gordon e
Daniel Sperling, em "Two Billion Cars" (Oxford University Press),
mostram que se trata de um dos menos inovadores segmentos da indústria
contemporânea: inova no que não interessa (velocidade, potência e
peso) e resiste ao que é necessário (economia de combustíveis e de
materiais).
Em segundo lugar, o planejamento urbano
acaba sendo norteado pela monocultura carrocentrista. Ampliar os espaços
de circulação dos automóveis individuais é enxugar gelo, como já
perceberam os responsáveis pelas mais dinâmicas cidades contemporâneas.
A consequência é que qualquer estratégia de
crescimento econômico apoiada na instalação de mais e mais fábricas de
automóveis e na expectativa de que se abram avenidas tentando dar-lhes
fluidez é incompatível com cidades humanizadas e com uma economia
sustentável. É acelerar em direção ao uso privado do espaço público,
rumo certo, talvez, para o crescimento, mas não para o bem-estar.
Não se trata - terceiro ponto - de suprimir
o automóvel individual, e sim de estimular a massificação de seu uso
partilhado. Oferecer de maneira ágil e barata carros para quem não quer
ter carro já é um negócio próspero em diversos países desenvolvidos, e
os meios da economia da informação em rede permitem que este seja um
caminho para dissociar a mobilidade da propriedade de um veículo
individual.
Eficiência no uso de materiais e de
energia, oferta real de alternativas de locomoção e estímulo ao uso
partilhado do que até aqui foi estritamente individual são os caminhos
para sustentabilidade nos transportes. A distância com relação às
prioridades dos setores público e privado no Brasil não poderia ser
maior.
Publicado hoje na Folha.
Via Diário Gauche
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