A excelência da medicina cubana - O outro lado da história : " Nossa
medicina é quase curandeirismo", diz o médico cubano Gilberto Velazco
VEJA ON LINE, 30/08/13
"Nossa medicina é quase de curandeirismo", diz doutor cubano Gilberto Velazco
Serrano, de 32 anos, conta por que, em 2006, desertou de uma missão de
seu país na Bolívia - na qual os médicos eram vigiados por paramilitares
Aretha YarakO cubano Gilberto Velazco Serrano, de 32 anos, é médico. Na ilha dos irmãos Castro ele aprendeu seu ofício em meio a livros desatualizados e à falta crônica de medicamentos e de equipamentos.
Os sonhos de ajudar os desamparados bateu de frente, ainda durante sua
formação universitária, com a dura realidade de seu país: falta de
infraestrutura, doutrinação política e arbitrariedade por parte do
governo. "É triste, mas eu diria que o que se pratica em Cuba é uma medicina quase de curandeirismo”, diz Velazco.
Ao ser enviado à Bolívia em 2006, para o que seria uma ação humanitária,
o médico se viu em meio a uma manobra política, que visava pregar a
ideologia comunista. “A brigada tinha cerca de 10 paramilitares, que
estavam ali para nos dizer o que fazer”. Velazco não suportou a servidão
forçada e fugiu. Sua primeira parada foi pedir abrigo político no
Brasil, que permitiu sua estada apenas de maneira provisória. Hoje, ele
mora com a família em Miami, nos Estados Unidos, onde tem asilo político
e estuda para revalidar seu diploma. De lá, ele concedeu a seguinte
entrevista ao site de VEJA:
Como os médicos são selecionados para as missões?
Eles são obrigados a participar. Em Cuba, se é obrigado a tudo, o
governo diz até o que você deve comer e o que estudar. As brigadas
médicas são apenas uma extensão disso. Se eles precisam de 100 médicos
para uma missão, você precisa estar disponível. Normalmente, eles faziam
uma filtragem ideológica, selecionavam pessoas alinhadas ao regime. Mas
com tantas colaborações internacionais, acredito que essa filtragem
esteja menos rígida ou tenha até acabado.
Como foi sua missão?
Fomos enviados 140 médicos para a Bolívia em 2006. Disseram que íamos
ficar no país por três meses para ajudar a população após uma enchente.
Quando cheguei lá, fiquei sabendo que não chovia há meses. Era tudo
mentira. Os três meses iniciais viraram dois anos. O pior de tudo é que o
grupo de 140 pessoas não era formado apenas por médicos - havia pelo
menos 10 paramilitares. A chefe da brigada, por exemplo, não era médica.
Os paramilitares estavam infiltrados para impedir que a gente fugisse.
Paramilitares?
Vi armas dentro das casas onde eles moravam. Eles andavam com dinheiro e
viviam em mansões, enquanto nós éramos obrigados a morar nos hospitais
com os pacientes internados. Quando chegamos a Havana para embarcar para
a Bolívia, assinamos uma lista para registro. Eram 14 listas com 10
nomes cada. Em uma delas, nenhum dos médicos pode assinar. Essa era a
lista que tinha os nomes dos paramilitares.
Como era o trabalho dos paramilitares?
Não me esqueço do que a chefe da brigada disse: “Vocês são
guerrilheiros, não médicos. Não viemos à Bolívia tratar doenças
parasitárias, vocês são guerrilheiros que vieram ganhar a luta que Che
Guevara não pode terminar”. Eles nos diziam o que fazer, como nos
comportar e eram os responsáveis por evitar deserções e impedir que
fugíssemos. Na Bolívia, ela nos disse que deveríamos estudar a catarata.
Estávamos lá, a priori, para a atenção básica – não para operações como
catarata. Mas tratar a catarata, uma cirurgia muito simples, tinha um
efeito psicológico no paciente e também na família. Todos ficariam
agradecidos à brigada cubana.
Você foi obrigado a fazer algo que não quisesse?
Certa vez, eu fui para Santa Cruz para uma reunião, lá me disseram
que eu teria de ficar no telefone, para atender informações dos médicos e
fazer estatísticas. O objetivo era cadastrar o número de atendimentos
feitos naquele dia. Alguns médicos ligavam para passar informações,
outros não. Eu precisava falar com todos, do contrário os líderes saíam à
caça daquele com quem eu não havia conversado. Quando terminei o
relatório, 603 pacientes tinham sido atendidos. Na teoria, estávamos
em 140 médicos na Bolívia, mas foi divulgado oficialmente que o grupo
seria de 680. Então como poderiam ter sido feitas apenas 603 consultas?
Acabei tendo que alterar os dados, já que o estabelecido era um mínimo
de 72 atendimentos por médico ao dia. Os dados foram falsificados.
Como é a formação de um médico em Cuba?
Muito ruim. É uma graduação extremamente
ideologizada, as aulas são teóricas, os livros são velhos e
desatualizados. Alguns tinham até páginas perdidas. Aprendi sobre as
doenças na literatura médica, porque não tinha reativo de glicemia para
fazer um exame, por exemplo. Não dava para fazer hemograma. A máquina de
raio-X só podia ser usada em casos extremos. Os hospitais tinham
barata, ratos e, às vezes, faltava até água. Vi diversos pacientes que
só foram medicados porque os parentes mandavam remédios dos Estados
Unidos. Aspirina, por exemplo, era artigo raro. É triste, mas eu diria
que é uma medicina quase de curandeiro. Você fala para o paciente que
ele deveria tomar tal remédio. Mas não tem. Aí você acaba tendo que
indicar um chá, um suco.
Como era feita essa "graduação extremamente ideologizada" que o senhor menciona?
Tínhamos uma disciplina chamada preparação militar. Ficávamos duas
semanas por ano fora da universidade para atender a essa demanda.
Segundo o governo cubano, o imperialismo iria atacar a ilha e tínhamos
que nos defender. Assim, estudávamos tudo sobre bombas químicas,
aprendíamos a atirar com rifle, a fazer maquiagem de guerra e a nos
arrastar no chão. Mas isso não é algo exclusivo na faculdade de
medicina, são ensinamentos dados até a crianças.
Como é o sistema de saúde de Cuba?
O país está vivendo uma epidemia de cólera. Nas últimas décadas não
havia registro dessa doença. Agora, até a capital Havana está em crise.
A cólera é uma doença típica da pobreza extrema, ela não é facilmente
transmissível. Isso acontece porque o sistema público de saúde está
deteriorado. Quase não existem mais médicos em Cuba, em função das
missões.
Por que você resolveu fugir da missão na Bolívia?
Nasci em Cuba, estudei em Cuba, passei minha vida na ilha. Minha
realidade era: ao me formar médico eu teria um salário de 25 dólares,
sem permissão para sair do país, tendo que fazer o que o governo me
obrigasse a fazer. Em Cuba, o paramédico é uma propriedade do governo. A
Bolívia era um país um pouco mais livre, mas, supostamente, eu tinha
sido enviado para trabalhar por apenas três meses. Lá, me avisaram que
eu teria de ficar por dois anos. Eu não tinha opção. Eram pagos 5.000
dólares por médico, mas eu recebia apenas 100 dólares: 80 em alimentos
que eles me davam e os 20 em dinheiro. A verdade é que eu nunca fui pago
corretamente, já que médico cubano não pode ter dinheiro em mãos, se
não compra a fuga. Todas essas condições eram insustentáveis.
Você pediu asilo no Brasil?
Pedi que o Brasil me ajudasse no refúgio. Aleguei que faria o Revalida e
iria para o Nordeste trabalhar em regiões pobres, mas a Polícia Federal
disse que não poderia regularizar minha situação. Consegui um refúgio
temporário, válido de 1 de novembro de 2006 a 4 de fevereiro de 2007.
Nesse meio tempo, fui à embaixada dos Estados Unidos e fui aprovado.
Após a sua deserção, sua família sofreu algum tipo de punição?
Eles foram penalizados e tiveram de ficar três anos sem poder sair de
Cuba. Meus pais nunca receberam um centavo do governo cubano enquanto
estive na Bolívia, mas sofreram represálias depois que eu decidi fugir.
Quando você foi enviado à Bolívia era um recém-formado. A primeira
leva de cubanos no Brasil é composta por médicos mais experientes...
Pelo o que vivi, sei que isso é tudo uma montagem de doutrinação. Essas
pessoas são mais velhas porque os jovens como eu não querem a ditadura.
Eu saí de Cuba e não voltei mais. No caso das pessoas mais velhas,
talvez eles tenham família, marido, filhos em Cuba. É mais improvável
que optem pela fuga e deixem seus familiares para trás. Geralmente, são
pessoas que vivem aterrorizadas, que só podem falar com a imprensa
quando autorizadas.
Os médicos cubanos que estão no Brasil deveriam fazer o Revalida?
Sim. Em Cuba, os médicos têm de passar por uma revalidação para praticar
a medicina dentro do país. Sou favorável que os médicos estrangeiros
trabalhem no Brasil, mas eles precisam se adequar à legislação local.
Além do mais, a formação médica em Cuba está muito crítica. Eu passei o
fim da minha graduação dentro de um programa especial de emergência. A
ideia era que eles reduzissem em um ano minha formação, para que eu
pudesse ser enviado à Bolívia. O governo cubano está fazendo isso:
acelerando a graduação para poder enviar os médicos em missões ao
exterior.
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