Publicada dias atrás no jornal Folha de São Paulo, reportagem conclui que o
ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas. A teoria do domínio do fato
teria sido adotada de forma inédita pelo STF (Supremo Tribunal Federal)
para condená-lo.
A adoção da referida teoria teria trazido para o cidadão comum uma
"insegurança jurídica monumental" pela razão de que a partir de
agora, mesmo um inocente poderá sofrer condenação baseada somente em presunções
e indícios.
A afirmação acima é do conhecido jurista Ives Gandra Martins, que se revela no
polo oposto do "espectro político e divergiu "sempre e muito" de
Dirceu".
Segundo Martins, o julgamento do escândalo do mensalão teria dois lados: um
positivo de inaugurar a expectativa de um novo país com a punição de políticos
corruptos e outro, ruim e perigoso, pelo abandono do STF do princípio segundo o
qual a dúvida favorece o réu.
O princípio do in dubio pro réu, expressão latina que significa que a dúvida
favorece o réu expressa o princípio da presunção da inocência é pilar do
Direito Penal e se liga ao princípio da legalidade. Em outras palavras, se a
prova não for certeira, mas duvidosa, a situação não pode gerar uma condenação.
Supostamente a inexistência de provas contra o réu José Dirceu teria gerado a
utilização pelo STF da teoria do domínio do fato.
Teoria do domínio do fato
Interessante e necessário se perquirir a respeito da referida teoria. A simples
pesquisa em enciclopédias virtuais permite à constatação de que a teoria do
domínio do fato foi criada por Hans Welzel em 1939 para julgar os crimes
ocorridos pelo Partido Nazista alemão. Ela consistiria na aplicação da pena ao
mandante de um crime na qualidade de autor e não como partícipe do crime. No
julgamento dos crimes nazistas, devido à jurisprudência alemã, a teoria não foi
aceita.
A teoria foi desenvolvida em 1963 por Clauss Roxin e ganhou projeção
internacional com a publicação da obra Täterschaft und
Tatherrschaft. Para ser aplicada a teoria, é necessário que a
pessoa que ocupa o topo de uma organização emita a ordem do crime e comande o
fato.
Na Argentina, a teoria foi utilizada para julgamento da Junta Militar da
Argentina, considerando que os comandantes poderiam ser considerados culpados
pelos desaparecimentos de várias pessoas durante o regime militar argentino.
Também foi utilizada pela Suprema Corte do Peru ao culpar Alberto Fujimori
pelos crimes ocorridos durante seu governo, alegando que ele controlou
sequestros e homicídios. Foi também utilizada em um tribunal equivalente ao
Superior Tribunal de Justiça na Alemanha, para julgar crimes na Alemanha
Oriental. É muito utilizada no Tribunal Penal Internacional.
A teoria do domínio do fato teria sido utilizada inicialmente no Brasil no
julgamento do escândalo do mensalão contra o réu José Dirceu ao condená-lo. As
razões para tal teriam sido que ele deveria ter conhecimento do fato devido ao
alto cargo que ele tinha no momento do escândalo.
As críticas geradas pela utilização de tal teoria seriam decorrentes da falta
de provas contra o réu na participação dos crimes então julgados.
A própria Folha de São Paulo entrevistou Clauss Roxin, hoje com 81 anos de
idade e colheu importantes observações a respeito da teoria em questão.
Para Roxin, participação no comando de esquema tem de ser provada. Devido à sua
insatisfação com a jurisprudência alemã --que até meados dos anos 1960 via como
participante, e não como autor de um crime, aquele que ocupando posição de
comando dava a ordem para a execução de um delito, desenvolveu a teoria do
domínio do fato, segundo a qual autor não é só quem executa o crime, mas quem
tem o poder de decidir sua realização e faz o planejamento estratégico para que
ele aconteça. O próprio autor diz que a decisão precisa ser provada, não
bastando indícios de que ela possa ter ocorrido.
Fundamento utilizado no STF para se condenar o ex-ministro José Dirceu, para o
autor que desenvolveu a teoria alemã, "Quem ocupa posição de comando tem
que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado".
Segundo Roxin, em relação aos crimes do nazismo, achava que quem ocupasse
posição dentro de um aparato organizado de poder e desse o comando para que se
executasse um delito, teriam de responder como autor e não só como partícipe,
como queria a doutrina da época.
A jurisprudência alemã da época ignorou a teoria. Os êxitos se deram,
entretanto, na Argentina, com o processo contra a junta militar de Jorge Rafael
Videla, presidente da Junta Militar que governou o país de 1976 a 1981, considerando
culpados os comandantes da junta pelo desaparecimento de pessoas. Está no
estatuto do Tribunal Penal Internacional e no equivalente ao STJ alemão, que a
adotou para julgar crimes na Alemanha Oriental. A Corte Suprema do Peru também
usou a teoria para julgar Fujimori, presidente entre 1990 e 2000.
Ives Gandra rejeita absolutamente a utilização da teoria do domínio do fato
para dar fundamento à condenação de um acusado supondo sua participação apenas
pelo fato de sua posição hierárquica. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma
organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso
seria um mau uso.
Indagado se o dever de conhecer os atos de um subordinado implicaria em
co-responsabilidade, responde o jurista que a posição hierárquica não
fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber
não basta. Em relação ao caso do Fujimori, no Peru, por exemplo, foi importante
ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados.
Em relação à pressão da opinião pública por punições severas no mensalão,
podendo ou não influenciar os juízes, na Alemanha há o mesmo problema. O clamor
por condenações severas dispensa provas suficientes fato que, por si só, é
perigoso para as instituições. Por não corresponder ao direito, o juiz não deve
ficar preocupado com a opinião pública. Os juízes só se obrigam perante a lei e
não perante às opiniões das pessoas leigas ou não.
O desconforto da população com a corrupção não pode desfigurar o arcabouço
construído pelas normas jurídicas justamente para possibilitar a coexistência
social dentro do modelo desejado e aceito pela maioria do povo, em consonância
com os princípios da justiça e da democracia. Os juízes são justamente os
garantidores da sua aplicação e do funcionamento das instituições sócias
conforme os moldes legais e normativos desejados e institucionalizados conforme
a Lei Maior que é a Constituição Federal.
Martins não aceita a teoria jurídica do domínio do fato em razão de se poder
trabalhar com a mesma apenas com indícios e presunções e não com provas reais e
concretas. Na teoria do domínio do fato a busca não é da verdade material, mas
a de apenas um só depoimento capaz de incriminar uma pessoa. Em poucas
palavras:
"Não há nenhuma prova senão o depoimento dela - e basta um só depoimento.
Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você
deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma
insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de
advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do
"in dubio pro reo" [a dúvida favorece o réu]".
Para o referido advogado, o domínio do fato é novidade absoluta no Supremo. Foi
uma teoria inventada, tirada de um autor alemão, embora também na Alemanha ela
não seja aplicada. E foi base para condenarem José Dirceu como chefe de
quadrilha do mensalão. "Aliás, pela teoria do domínio do fato, o maior
beneficiário era o presidente Lula, o que vale dizer que se trouxe a teoria
pela metade".
A existência da prova material de um crime, ressalte-se, dispensa a teoria do
domínio do fato para gerar condenação.
Segundo Martins, não há provas contra José Dirceu e, nos embargos infringentes,
Dirceu dificilmente vai ser condenado pelo crime de quadrilha.
Agora que vivemos em um regime democrático, muitas injustiças diante do poder
são evitadas pelo princípio do iin dubio pro reu. A Constituição assegura a
ampla defesa. O processo penal objetiva fundamentalmente a defesa do acusado e
não a da sociedade.
A sociedade se defende por meio do seu aparelho para condenar. O que nós temos
que ter no processo democrático é o direito do acusado de se defender. Ou a
sociedade faria justiça pelas próprias mãos.
Pela primeira vez no Brasil se discute, em profundidade, se os políticos
desonestos devem ou não ser punidos. O fato de ter se transformado o processo
do mensalão num caso político tornou o julgamento paradigmático. O
Supremo sentiu o peso da decisão. Tudo isso influenciou para a adoção da teoria
do domínio do fato.
Conclusão
A utilização da teoria do domínio do fato aconteceu para condenar o suposto
chefe da quadrilha do mensalão, mesmo que aparentemente sem provas materiais.
Entretanto, o real interessado e chefe da operação do mensalão não era o
Presidente Lula? Por que não foi o mesmo nem processado e nem muito menos
condenado? Com ou sem provas materiais? É a pergunta que não quer calar...
Autor
Francisco de Salles Almeida Mafra Filho é Doutor em
Direito Administrativo e escritor