Sábado, 10 de junho de 2006
Paixão nacional. Um artigo de Cristovam Buarque
"O Brasil tem grandes craques graças ao gosto pelo futebol, ao tamanho da nossa população e ao fato de que todos têm acesso à bola e ao campo de pelada. Nosso país não tem, até hoje, nenhum Prêmio Nobel de Literatura ou Física, porque poucos têm acesso a ensino de qualidade desde a primeira infância, com professores bem remunerados, preparados e dedicados, dispondo de livros e computadores na quantidade e qualidade necessárias". O comentário é de Cristovam Buarque, senador - PDT-DF, em artigo publicado, hoje, 10-6-06, no jornal Globo.Segundo ele, "para que as medalhas intelectuais cheguem, é preciso ter pela escola a mesma paixão que o Brasil tem pelo futebol".
Eis o artigo:
"Em cada dez dos melhores jogadores de futebol do mundo, pelo menos cinco são brasileiros. Entre todos os prêmios Nobel do mundo, nenhum é brasileiro. Entre os grandes jogadores brasileiros, quase todos têm origem pobre, enquanto quase todos os profissionais de nível superior vêm das camadas ricas e médias.
Nestes tempos de Copa do Mundo, a TV e o rádio mostram, todos os dias, pequenas biografias dos nossos grandes jogadores. Em comum, todos têm o fato de terem começado a jogar futebol aos quatro anos de idade, em algum campo de pelada perto de casa, às vezes no quintal de um amigo. Todos continuaram, com persistência, o desenvolvimento de seus talentos. Transformaram-se em grandes craques, graças à oportunidade, ao talento e à persistência.
No Brasil de hoje, 20 milhões de meninos jogam futebol. Se apenas um em cada dez mil tiver talento e persistência, nas próximas Copas teremos dois mil ótimos jogadores; se for um em cada um milhão, ainda assim teremos dois times completos, formados por grandes craques.
O mesmo não vai acontecer com a ciência, a tecnologia e a literatura no Brasil. Não teremos 20 prêmios Nobel, nem mesmo juntando, a esses meninos, os outros 20 milhões de meninas. Porque poucos entrarão na escola aos quatro anos. Não terão acesso a verdadeiras escolas, não poderão persistir no desenvolvimento de talento, não terão livros ou computadores como têm bolas.
O Brasil tem grandes craques graças ao gosto pelo futebol, ao tamanho da nossa população e ao fato de que todos têm acesso à bola e ao campo de pelada. Nosso país não tem, até hoje, nenhum Prêmio Nobel de Literatura ou Física, porque poucos têm acesso a ensino de qualidade desde a primeira infância, com professores bem remunerados, preparados e dedicados, dispondo de livros e computadores na quantidade e qualidade necessárias.
Os campos e as bolas surgem espontaneamente, ou pelo esforço da comunidade e dos próprios meninos. A escola e os computadores só estarão à disposição se houver um esforço deliberado do país inteiro.
Ninguém vira craque por sorte, e sim por talento e persistência. Mas, no Brasil, o desenvolvimento intelectual depende, antes de tudo, da sorte de nascer em uma família rica, em uma cidade próspera, com um prefeito que dê prioridade à educação. O talento e a persistência vêm depois porque, antes, precisam de oportunidade: uma escola de qualidade. O desenvolvimento intelectual depende de condições criadas pelo Estado nacional: escolas, livros, computadores, professores.
Se tivéssemos feito isso há cinqüenta anos, o Brasil seria o campeão do saber, e não o lanterninha, posição que ocupamos atualmente. Se o fizermos agora, daqui a 20 anos teremos recuperado terreno, e aí teremos a chance de vencer não só a Copa do Mundo, mas também a Copa do Saber, do conhecimento, da ciência, da tecnologia, da literatura. Ganharemos as medalhas do Nobel, além das taças da Copa.
Além do mais, teremos o capital e as bases para construirmos o Brasil do século XXI. O futebol deslumbra, mas só o saber constrói.
Tudo isso, porém, enfrenta um grave impedimento: os brasileiros têm paixão pelo futebol. As vitórias emocionam, as derrotas deixam todos abatidos. Mas não existe a mesma paixão pela educação. Há semanas, os meios de comunicação informaram que estamos perdendo para o Haiti em termos de repetência escolar. Nada aconteceu, ninguém se incomodou. Se tivéssemos perdido para o Haiti no futebol, nossos jogadores teriam sido muito mal recebidos na sua volta ao Brasil.
Para que as medalhas intelectuais cheguem, é preciso ter pela escola a mesma paixão que o Brasil tem pelo futebol
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